3 de julho de 2008

Legado

Tinha sempre orgulho naquilo que eu escrevesse, por mais que lhe faltasse método ou poesia. Hoje nada me parece suficiente para lhe dar. Amava-me inteiramente e o que tenho para dizer nunca estará à altura de um amor assim.

Ensinou-me a acreditar na palavra. A admirá-la. A respeitá-la. Porque sou feita de desapego, presunção e cobardia. E coisas pequenas.

As palavras aprendidas permanecem em mim. Como os tesouros dos navios no fundo do mar. Encalhadas. Tudo o mais que sou eu é precário, instável, temporário. Momentos fragmentados a transitar no limbo de um presente que não pesa. Que é um cesto vazio que o ontem esgotou e que o amanhã há-de preencher. Uma consequência directa do facto de existir.

Só as letras se me prendem às mãos por fios intrincados de marioneta. Simples e fáceis de seguir como um rasto de migalhas. Imprescindíveis como os homens que lutam toda a vida.

Explicou-me o amor pelas coisas verdadeiras. Como a poesia, a honra, a História. E a palavra irmão. E descubro que há lições que não esqueço: a arte de encostar a solidão à lombada de um livro, como quem apoia uma bengala à parede, e seguir devagarinho pelas páginas, liberta de ser eu por umas horas. Admirar mais quem dá, do que quem vende. Ver o lado bom. Acreditar.

Mas não tinha medida. Amava demasiado e sempre mais. As ideias e as pessoas e os ideais. Sem limites, nem regras. Irreflectido e cru.

No fim sobrou-lhe tempo. Um excesso de dias solitários que os gestos antigos não escoavam. O silêncio e a ausência. Ininterruptos, sufocantes e dolorosamente presentes. Eu nunca tinha tempo para o tempo que ele tinha. Ele importava-se mas não dizia nada. Ou contava uma piada. Ou desconversava. E sabíamos os dois.

Quando se foi embora, sei que levava na alma a musicalidade do meu riso de criança. E o cheiro da terra. E que tinha os bolsos cheios de histórias e canções. E a boca tinta de vinho, conversas e alegria. E uns dedos em falta, de tanto moldar sonhos com as mãos.

Fico. E todas as manhãs despertam em mim como uma aposta. Sem lhe dizer adeus ou desculpa ou obrigada. Que amar talvez seja isso: nunca dizer com a boca. Com as recordações e as palavras. Os restos da vida. O importante.

E, às vezes, quando as frases que tenho não me bastam, vou à cabra-cega pelo quintal da memória, tentar agarrar com os braços estendidos um resquício da voz conhecida. E lembro-me, novamente, do caminho. É esse o seu legado.

5 comentários:

Anónimo disse...

vou comentar porque me mandaste fazê-lo, já sabia q ia chorar... e ele ia gozar, ia dizer "só se não chorares".
Preferia n ter o legado e ele aqui connosco.

Anónimo disse...

Se tivesse que escolher palavras para dedicar à memória do meu pai, seriam estas tuas que escolheria!

Mirabilis (ou Sherazade) disse...

Jacquie,

Até parece mal admitires assim que te "mandei" comentar... ;P

Ele ia mesmo dizer isso. E tu ias chorar à mesma. Era sempre assim :)

Acredito que nalgum lugar de um mundo que não é este, essas coisas boas e seguras de tanto serem sempre iguais, ainda estão a acontecer. E que ele, sempre que quer, vai a esse lugar vivê-las outra vez.

Love you sis :)

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Abraim,

Sei que não é qualquer palavra que entregarias ao teu pai. Obrigada por dares todo esse valor a estas minhas.

(...e um obrigada extra por continuares a vir aqui :))

Beijo grande,

Kleoptra disse...

E ficar a lutar para as lágrimas não cairem quando se está a trabalhar com mil pessoas à volta?
A palavra é bem pequena para o que escreveste mas digo de qql maneira: amei.
É o teu pai da primeira à última linha.

Priscila Nascimento disse...

Ola! De fato TEU texto eh lindo, mas nao fostes eu que postastes em meu blog, fato que estas assinado como Priscila Nascimento, mas o blog tem mais de uma pessoa postando. Enfim isto nao vem ao caso, soh vim dizer q o MERITO eh todo seu, e vc sabe disso. PARABENS e desculpe qquer coisa (ainda q eu nao tenha total participacao nisso, pq estou fora do pais e sem muito tempo p/ net), mesmo q meu nome esteja inserido no tal post. Confirurarei uma politica TBEM ENTRE OS AUTORIZADOS A POSTAR EM MEU BLOG, q por sinal sao amigas minha, malucas e inconsequentes de fato, mas "tuto buona gente".
Desculpe mais uma vez e sempre MEUS PARABENS POR SEU BLOG que esta realmente digno de um conteudo de encher os olhos e preencher a alma.