17 de julho de 2007

Um estranho instrumento

Pareço inteira, resignada, ilesa e sossegada
e não passo de um ilusionista
serrado ao meio no centro de um palco.
Um pequeno truque de magia.

E danço no riso dos outros,
enleada à sua voz e aos seus movimentos,
banal como o nascer do dia
a erguer-se ligeiro no cimo dos prédios.
Uma parte de um todo.
Um naco, um pedaço, uma fatia.

Trago um buraco no ventre da alma,
fundo como uma cova,
onde conservo a queda e a vertigem
e a essência mesma da fractura.
Do despedaçamento.

E permaneço
à beira do penhasco
imperturbavelmente vertical.
Como uma estátua de pedra
que o mínimo gesto quebraria.
Sem passos nos meus pés.

Quando vieres,
se não tivermos medo,
talvez te mostre
este abismo de onde vêm as palavras
e me ensines a atravessá-lo sem cair.

Até lá remanesço
aparentemente inteira e intacta e conciliada
a consumir o vazio
e a fabricar palavras
como um estranho instrumento avariado.