10 de abril de 2008

Better half

De repente as letras ficam turvas, os dedos perdem o gesto e algo em mim se dissipa. E só o coração permanece. A tentar decifrar no enevoado das páginas, com os seus olhos rasgados por punhais e cicatrizes, a fórmula mágica de um feitiço de amor. Um encantamento simples, sem pós de perlimpimpim ou poções milagrosas, que torne a fazer das letras as palavras perdidas e reponha nos meus dedos os gestos esquecidos.

Talvez se o teu corpo fosse de barro e não de carne e osso, o meu pudesse ser feito de pele e matéria permeável. E o amor seria algo que faríamos, sem que fosse necessário invocá-lo por um qualquer ritual de sortilégios.

Mas metade de mim ainda não está aqui. Metade de mim tem agora asas de pássaro e presas de lobo e escamas de peixe hermeticamente impenetráveis. E já não acredita em caras-metade e em “para sempre(s)”. O resto sou eu. A mastigar o medo e a derrota na tristeza calada dos dedos roídos. A escrever devaneios e saudades. Coisas que não existem.

Por isso, quando vieres para me amar, não me tragas promessas. Porque é deste chão de promessas estilhaçadas que brota a cada dia o veneno acre da desolação. Espera apenas que eu adormeça. E grita para dentro dos meus sonhos que o meu corpo todo é uma planície e o teu coração um peregrino.

Que eu hei-de acordar com mãos de mulher e virtudes de feiticeira. Para te desenhar a pele com os gestos reencontrados de doçura e volúpia. E te sussurrar ao ouvido as palavras inteiras enfim desvendadas, como o mapa secreto de um tesouro escondido. Que o segredo do amor é ter quatro braços, quatro pernas, duas bocas, duas vozes, dois corações. O de ser ao dobro e não ao meio. E ser melhor assim.