3 de dezembro de 2005

quase

E eu mais uma vez no mesmo sítio. Como andar ás voltas. Exactamente ali, nem um único milímetro mais á frente, no mesmo lugar. O meu lugar. Tão explorado e percorrido e exaustivamente analisado que eu julgava nunca mais ter de voltar. Mas volto. Vou. Fico. Incontornavelmente. Como ver o mundo pelos meus olhos. Ou senti-lo com o meu corpo.

Julgo que a culpa é do quase. Por não ser totalmente. Por desmaiar as cores dos quadros do meu cérebro até que eu já não as veja, descansada em tons pastel, e as acordar depois, num golpe assassino de pincel, dolorosamente vibrantes. Por se entranhar.

Porque há muito em mim que é quase. As coisas guardadas no limbo viscoso entre recordação e realidade. As mágoas de outros tempos quase ultrapassadas e o facto de quase não chorar pelas lágrimas que chorei quando ainda a mágoa não tinha quase passado. Os recomeços em que se deixam para trás promessas incumpridas e votos quebrados e quase se acredita numa nova primeira vez. A química avassaladora das sensações antigas, a vontade, a água na boca e o tornarmo-nos depois tão quase imunes ao seu apelo. As coisas de que quase não me lembro. Momentos, rostos, sabores, palavras. Trocas.

Porque a verdade é que as coisas que passam permanecem. E não falo em cicatrizes da alma ou em marcas do coração. Porque essas só enfeiam, não aleijam. Falo das coisas que ficam. Do rasto. Do resto. Das moinhas. Falo dos lugares. Dos fantasmas que vencemos toda a vida e que a mesma vida inteira nos assustam. Dos desejos satisfeitos mas nunca saciados. Das respostas eternamente incompletas por muito que façamos a pergunta. Ou que deixemos de a fazer.
O meu quase é a persistência das coisas a que renuncio.