28 de maio de 2006

Sem dedos

O mal do coração é não ter dedos.
Se os tivesse, a mágoa não teria de passar pelo cérebro. Nem pelos olhos. Ser-te-ia entregue cada arranhão, cada nódoa-negra, cada amolgadura e eu não precisaria de ir à procura das palavras que me doem só para te poupar o esforço de as encontrares sozinho.

Espero-te por hábito, placidamente. Num mundo de instantes que faço permanecer, na falta de saber o que mais fazer com eles. Numa incerteza de esboço, mais que preparada e nunca pronta, como as viagens excessivamente planeadas. E se ainda acredito é porque aprendi a ver em ti para lá dos gestos, das palavras e dos resultados. A semente e não o fruto. Mas sobram-me demasiados momentos. Em que não te basto e não me chegas, que o mal do verbo dar são as armadilhas do termo retribuir.

Ainda assim adormeço nos teus braços esta noite. Fechada como uma caixa, onde tudo se guarda, se confunde, se esconde. Onde tudo fica mas nem tudo cabe.
Acorda-me amanhã devagarinho. Quente e brando como um dia de Verão. E quando tiveres de abrir a tampa, fá-lo com cuidado porque terás de a abrir com mãos. Que o mal do coração é não ter dedos.